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Dia (in)comum


Não me fale do amor.
Aquele que deixou suas vestes brancas e vestiu a farda
e tem um gatilho frio, que agora amarga, no peito da juventude orfã.
Não exemplifique a mim a cor vermelha pelo sangue na calçada. Não.
Não me mostre a manchete que meu bairro agora elege: não é praça inaugurada, menino promissor,  jogador de futebol, estádio ou estação de trem. Nada.
A notícia é quente e não é da tarde de sol nem do amor pungente.
É quente como sangue, prematuro e derramado pelas rua que passei, um dia sorrindo.
É do menino do meu bairro, vizinho e não visto, que melhor seria anônimo, do que notícia regional.
Há quem chora e há quem cala nesse dia (in)comum,
algumas faces emudecem enquanto outras fazem a prece:
...
(Só não chamem a polícia do metal que brilha e fere).

Poesia do esquecimento


Lembro-me da borboleta e da morte da lagarta.
Quero amar e sonhar sem memória:
Sem salto e queda
Sem queda e dor
Voar pra que?
Se o inverso do voo é a gravidade que nos vence...

Lembrar é ter saudade e de repente dor.
Dar passos memoráveis à estação primeira.
Primeiro amor,
Primeiro susto,
antes do salto abissal.

Um projeto de poema

Uma dedicatória...

Daqui a vinte anos farei o teu Poema,
não para que a flores pasmem e a vida finalmente atue.
É necessário esse mastigar de memória sem precipitações,
e perceber na matéria possuída aquilo que nela se fundiu:
a vida e o amor, em fragmentos.

Tanto amor,
tanta vida.
Pela minha mão escorrem os fatos que colhi agora pouco.

Vejo uma mão que é tua e que acena a partida.
Enquanto a outra, que aos meus cabelos se prende,
promove a saudade daquela que se foi.

Queria eu te dedicar quarenta flores belas,
pintadas em quarenta telas, aquarelas,
pelos anos de tua inauguração,
para que o tempo não as toque com o fim,
como toca na gente,
como toca nos outros.

Mas se te dedico esta poesia prematura
é por que a maturidade é condição que não possuo.

Vejo em você o silêncio que intercala os versos de uma grande poesia.
Uma suspensão do tempo há nos teus olhos
quando esquadrinham a ordem das coisas,
e que, demasiadas pungentes, fazem te calar.

Vejo em você as paixões não reveladas
ou que, quando muito ditas, vieram a se enjoar pelos cantos.
É um bem querer mais que bem querer,
mas que, ao se confundir com a razão dos projetos,
desvia-se das utopias dos românticos,
esquiva-se dos cantos das sereias.





(In)finito ciclo

Vejo uma janela sobre o céu.
Fora dela: rastros de vidas.
Energia.

Um sol queima nas tardes dos desejos.
Na tarde que o sol se põe os desejos queimam.

O sol e a vida se põem.
E os desejos, sem fim, continuam a lançar,
sobre as janelas e quintais dos nossos corações,
o calor antecipado do devir.

Sobre as janelas e quintais dos nossos corações,
a espera espia o tempo,
enquanto o sol ilumina os trópicos
com paciência.

ana tereza barboza

ana tereza barboza
Grafito y bordado en tela. 130 x 102 cm (2011)