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Arestas

Pra se alimentar de sonhos
às vezes tem que ser igual criança.
Levar à boca em colheradas de vento
a impressão imaginada do doce.

Agora meu irmão refaz o gesto
fingido de alimentar vazios.
E abre e mastiga e fecha
apurando o sabor da coisa
que podia ser tudo.

Enquanto tateio problemas
e farelos de pão descobertos
entre as dobras da toalha da mesa,
minha avó diz que às vezes suas ideias
são vento num vazio dos grandes:

Dá medo isso de não ter chão pra pisar?

(O doce da vida seria talvez a imaginada colherada de vento na boca)

dedicatória

minha prece vai
à poesia que fala:
o atrito das pedras,
o rangido dos dentes,
a frequência do som
das gotas sobre a pele
(suor sem salvação
ou temporal em dia de luto)

minha prece vai à poesia que fala
a danação em dia de domingo,
a febre da cicatriz na face da rua,
a perdição,
a prece das mães em dia de insônia

minha prece vai à poesia que grita
ao silêncio grifado nos muros do mundo
e sobre o vermelho comum dos asfaltos

minha prece vai à poesia do susto,
que cora a face do útil,
dessa conformidade.


Gênese

A minha queda maior
é a quieta de dentro:

veneno abrindo caminho entre as vísceras.

A reivindicação do corpo
faz alarde nos portais
da minha boca,

meu sorriso vai
me tirando as peças
do corpo.


Recolher

Passo equivocadamente
pela radiografia
da auto perscrutação
já prevendo estar
é nas vísceras
a disposição que tenho
para aniquilar sossegos.

Anúncios de guerra
são colados na parte
de dentro da pele
para receber sem imprevistos
o aniquilamento
durante os passeios
de domingo.

Faço de mim meus escombros:

e quando a destruição
requer concertos
desapego minhas mãos das armas
e empreendo trabalhos
à fratura da noite.



10 de fevereiro

projeto.

prever a possibilidade de mudança
como atualizar uma lista de músicas
sem alterar a ordem das lembranças
dispostas conforme a data da última alteração.

interlúdio.

ouvi gradualmente
escapar dos corpos
a comunicação
capaz de engatar
futuros.

revisão.

acionar a recuperação das coisas ditas
como corrigir nas horas de um ano atrás
o abraço dado torto no amor
e a palavra,
a palavra grifada no quarto das más interpretações.

na impossibilidade:

Propus pensar nos mecanismos da palavra
pra melhor definição do dia,
e o dia me cala a boca de grito
pra eu gritar devagarinho
na morada-poesia.

Mas como aniquilar a tirania do veneno
distribuido na hora do desespero das bocas,
a indiferença do impacto dos corpos na avenida,
a deliberação alheia sobre a extensão dos passeios,
a mágoa que se faz do silêncio cativa,
da retrospectiva,
de tudo que é
imagem fixada
no muro da gente
e que impõe:
lacre às casas
lacre às gentes?

vermelha

quis até ver
esse foco nos meus olhos

e esses olhos:
uma interdição pulmonar,
senão um cansaço
          uma desfibrilação
          uma sujeição maior ao que me peca

uma boca ansiosa
ambiciona sussurros
mas quieta interpõe
soluço de constranger
catedrais

ais

me movo à mente e minto a cara –
disfarçaria melhor com óculos,
mas o que tenho não passa
de uma capa de livro vermelha

ana tereza barboza

ana tereza barboza
Grafito y bordado en tela. 130 x 102 cm (2011)